Há uma pequena coleção de discos de vinil no meu ateliê que eu escuto raramente. Não consigo trabalhar ouvindo eles porque tenho que parar a cada vinte minutos para trocar o lado ou de disco. Normalmente coloco umas playlists no streaming e deixo rolar. Mas naquele dia bateu uma vontade de escutar os discos enquanto eu arrumava o ateliê. O primeiro a ir para a agulha foi o To Be Me dos suecos do Regulations, um dos favoritos da casa. De carona vieram outros, uns mais agressivos outros mais tranquilos, uns tortos e outros puro barulho.
Ir para o ateliê, mesmo sem vontade de trabalhar, sempre resulta em alguma feita no final do dia. Acredito que tem a ver com aquela parada de gatilhos mentais. Quando estou em casa eu não quero fazer nada além de assistir algum filme, ler um pouco e mexer no celular. No ateliê as vontades são outras. Mesmo com preguiça de pintar, eu acabo começando e terminando alguma coisa qualquer que está ali para ser feita. Sempre há coisas que precisam ser feitas.
Neste dia em questão fui arrumar a mesa e me deparei com um desenho que havia largado pela metade. Era um pequeno retrato de uma punk, que me lembrou de outro desenho. Peguei os dois, rasguei no meio e fiz duas colagens trocando as partes de baixo. Assim, o dia transcorreu com uma sucessão de causas e consequências, um desenho levando a outro, levando à algo que precisava colocar no lugar e coisa e tal. Tudo isso intercalado por pausas para trocar os discos. Um verdadeiro festival punk internacional com bandas brasileiras, europeias e norte-americanas passaram pelo palco da velha Gradiente DD-200Q.
Essa minha história com o punk começou no natal de 1998. Ganhei de amigo secreto duas fitas k7: DJ Jamaika - Utopia (se fosse sempre assim) e Raimundos - Lapadas do Povo. O rap do DJ eu já conhecia da escola. Desde o ano anterior eu vinha pegando emprestado fitas com os colegas. O Sobrevivendo no Inferno, Álibi, Cirurgia Moral, Guind’Art 121 dentre outros. Diferente dos meus colegas que chegaram a vivenciar muitas das histórias trágicas relatadas pelos poetas, eu gostava do rap pela música em si, pelo storytelling das letras. Para eles o rap era um documentário, para mim era ficção. Eu era privilegiado. Família estruturada e morando em um bairro que mal tinha habitantes para se tornar qualquer coisa. Até o Minha Casa, Minha Vida, na rua onde moro só tinha cinco casas. No final dos anos 90, o Jardim Bela Vista era só lote baldio, muitas fábricas e condomínios populares. Ainda hoje a população destes prédios é um mistério para quem não mora neles. A gente só os vê fora dos muros no dia da feira. Como a comunidade era pequena, o local era relativamente seguro, raramente alguém de outro bairro vinha apavorar por aqui. A temperatura era mais quente em outras vizinhanças.
A outra fita que ganhei naquele natal, a do Raimundos, veio como uma revolução, tipo os bolcheviques tomando o Palácio de Inverno. Nunca havia escutado uma música tão rápida. Fiquei obcecado. Minha tragédia é que, no meu círculo eu era o único que escutava aquilo, não tinha ninguém para me emprestar fita, nem ao menos indicar um nome. Satisfazia a curiosidade comprando revistas, vasculhando sebos atrás de cds e pegando zines na Hocus Pocus. O punk, o hardcore e o metal bateram em mim muito mais forte que o rap. Apesar dos dois tratarem de problemas causados pelo mesmo sistema, lá pelos meus 12/13/14 anos de idade, eu não tinha muita capacidade intelectual de interpretar o rap de maneira tão profunda. Já a crueza e o discurso direto do punk, aliada à energia acumulada pela falta do que fazer no JBV canalizou certos incômodos que o eu juvenil tinha e não sabia o que era. Nasce o Diogo esquisito.
O punk foi uma porta de entrada para drogas mais pesadas. Vieram na mesma esteira marginais de todas as classes. Cinema, literatura, quadrinho underground, anarquismo e demais ideias políticas radicais. A parte gráfica formou em mim uma cultura visual estranha. Fotos de violência em alto contraste, ou colagens ridicularizando líderes de qualquer coisa — ninguém está a salvo, mate seu ídolo — a desconstrução do rigor técnico. Desenhos que são ao mesmo tempo horríveis e belos, o politicamente incorreto elegante, muito diferente dessa baboseira racista e misógina que os humoristas medíocres chamam de piadas. A ironia e o sarcasmo como ferramentas, mas utilizadas com classe, com inteligência.
Toda a esquisitice foi transferida para meu desenho de maneira muito natural, uma vez que minhas tentativas de ter uma banda haviam fracassado. Voltei as energias para a parte visual. Veio uma produção de zines, flyers de shows e ilustrações para bandas, além de uma grande produção para mim mesmo, para meu bel-prazer. Às vezes a coisa é irônica e humorada como um Garotos Podres, noutras é mais suave como um The Cure e às vezes mais agressiva como um Discharge, tudo depende do estado de espírito, do ranço das notícias, da fadiga.
A música tem um peso importante na minha vida e influencia muito minha produção. Já faz tempo que o punk perdeu o protagonismo, cedendo espaço para outras vertentes do rock, para a MPB, a cúmbia, o samba e o jazz. JAZZ. O rap retomou seu espaço, e hoje o vejo com outros olhos, muito mais respeitosos e conscientes. Entretanto internalizei muita coisa do punk e isso me trouxe onde estou e se não fosse aquela fita do Raimundos1, provavelmente eu nem tinha desenvolvido meu lado artístico.
Já fui chamado de alienado ou acusado de não querer crescer por conta do meu fascínio com o gênero, mas isso é coisa que entra por um ouvido e sai pelo outro. Ideias de quem pensa que o punk é sinônimo de cabelos moicanos e dedo do meio levantado. Pouquíssimos são os Bob Cuspe2 na vida, o comum são pessoas que têm que fazer o que todo mundo faz: Trabalhar, cuidar das crianças, da casa, dos pais idosos. Vão ao estádio assistir jogos, vão na festa junina da criança, passam 40min falando num call center… vocês me entenderam. Meu fascínio com o punk vai muito além da música — que é diversa com dezenas de subgêneros — mas pela comunidade de desajustados que se formou em torno de um estilo de vida que irrita muita gente pelo seu anseio por liberdade e respeito à todas, todos e todes.
A maior lição que aprendi disso tudo é que os discos, os zines e as artes que eu tanto admirava foram feitos por pessoas muito parecidas comigo e com você. Aquela conversa de que precisa ter dom para fazer arte ou música é conversa fiada de quem sonha em ser um tipo de sacerdote da cultura. Puro elitismo intelectual. Se eu, alienado na periferia fabril de Goiânia consegui, qualquer um consegue.
Memorando
dias 5 e 6 de julho (vulgo este fim de semana) estarei na Folheteria, feira que ocorre no Centro Cultural São Paulo (SP), começa as 12h e vai até as 18. Venham me ver.
a Artista Operário é produzida através de Inteligência Natural — nota-se pela falta de revisão e péssima gramática. É mais uma coisa, dentre as outras dez mil, que decidi fazer semanalmente. Apesar do trampo, tem sido divertido. Estou pensando seriamente em abrir os planos pagos. Se você vê algum valor nisso aqui, manifeste-se.
ela, assim como vários dos meus projetos, são feitos de maneira independente. Se você gosta do meu trabalho e deseja contribuir de alguma forma, você pode adquirir algo da minha loja virtual no diogorustoff.com
paz ✌️
Fato engraçado: O líder do Raimundos se mostrou um verdadeiro bolsominion, desses de ficar repetindo as asneiras mais ridículas. Nível olavete. Não que a banda fosse politizada nos anos 90, pelo contrário, era som de menino. Enfim, mais um caso daquele fenômeno curioso de gente que se revolta contra o sistema apoiando quem é o puro extrato do sistema.
Bob Cuspe é um personagem criado pelo cartunista Angeli na década de 1980. O Punk brasileiro naquela época era um movimento formado basicamente por jovens das periferias de São Paulo e da região do ABC paulista (claro que existiam punks e bandas em todo o território nacional, mas foi em SP que o movimento explodiu. Eles se juntavam em gangues e era frequente as brigas entre si, e também contra os skinheads e contra os metaleiros. Cuspir no outro foi popularizado pela banda Sex Pistols e tornou-se um ato popular entre os punks dessa primeira geração.